Vele a pena ler

“Liberalismo”, coveiro de igrejas?
                                                Leandro Thomaz de Almeida


É praxe entre os conservadores afirmar que as igrejas evangélicas na Europa foram arrasadas pelo advento do liberalismo teológico. Mas uma simples observação no cenário evangélico europeu lança dúvidas sobre essa afirmação. Visitei algumas igrejas evangélicas em Paris. A maior delas tinha um culto mais avivado, conquanto não pentecostal, e a menor um culto mais tradicional, de grande simplicidade. Também visitei uma que inovou, ao menos nesse dia, na prática da pregação, dividindo entre os membros várias trechos da mensagem, e uma outra bastante tradicional, no famoso bairro do Marais, cujo templo, aliás, é ponto turístico. Em todas elas, em que pesem as diferenças litúrgicas, um ponto em comum: uma teologia que não chega sequer perto do que os conservadores consideram ser o liberalismo teológico (apenas um parêntese: “liberalismo”, para os conservadores, é tudo o que foi dito pela teologia reformada no século XX – grande parte em tom de crítica ao liberalismo teológico clássico – que não está de acordo com sua opinião). Assim como na igreja evangélica que visitei em Estocolmo, a teologia pregada nesses cultos mostrou uma leitura literal da Bíblia, a firme crença na intervenção de Deus evidenciada nos pedidos de oração, defesa do dízimo como prática bíblica e todas essas práticas e ideias que não são em nada diferentes do que pode ser visto nas igrejas tradicionais brasileiras. Numa delas, inclusive, perguntei se eles liam todas as narrativas do AT de maneira literal. O pregador, um tanto quanto assustado, respondeu sem pestanejar que sim, e que “quem não lia assim não conhecia ao Senhor”. Ah sim: essas opiniões todas são subscritas pelo Xavier, missionário “independente” francês que aborda pessoas na rua propondo um estudo da Bíblia em grupo. Um desses grupos foi constituído por ele e... eu. Por que o conservadorismo do Xavier não atrai os franceses?


Portanto, a partir desse cenário surgem algumas perguntas: se o liberalismo teológico foi o responsável pela morte das igrejas evangélicas na Europa, como se explica que não haja sequer resquício dele nessas mesmas igrejas atualmente? A resposta pode ser que ele chegou “tão de repente, com seu jeito de sempre chegar” e fez um estrago tão grande que não restou ninguém pra contar história. Muito bem, mas nesse caso outra pergunta pode ser feita: se as igrejas com teologia tradicional reocuparam seu espaço após a vaga liberal, o que explica seu fraquíssimo apelo junto às sociedades europeias? Se o problema era o liberalismo, porque seu substituto não corrigiu o problema? Outra questão: se o liberalismo afastou as pessoas das igrejas, por que muitas dessas pessoas justificam seu afastamento apontando para os aspectos mais conservadores delas, tão perceptíveis na leitura literal da Bíblia e nas posturas tradicionalistas, quando não retrógradas e reacionárias, em matéria de moralidade? Você já ouviu alguém dizer que não vai à igreja por causa da concepção barthiana da Palavra de Deus, do método da correlação de Paul Tillich ou do cristianismo não-religioso de Dietrich Bonhoeffer? Dificilmente, por um motivo simples: essa teologia dita liberal não chegou às igrejas. Ela pode ter chegado às salas de aula de seminários, mas não passou daí para os púlpitos dominicais. Meus amigos de adolescência e juventude que hoje não estão na igreja saíram dela achando que a serpente não rastejava antes da queda...


Há, portanto, uma pergunta mais importante a ser feita: tivesse a teologia de homens como Barth, Brunner, Tillich, Bonhoeffer, Pannemberg, Metz, Moltmann etc tomado as igrejas reformadas, ainda assim contemplaríamos o cenário atual das igrejas evangélicas europeias? Não tenho a resposta, desconfio de que pior que está não estaria, mas intuo que as coisas seriam bem melhores, baseado em alguns indícios: a teologia por eles esposada, em que pese suas diferenças, foram esforços para responder às perguntas do homem contemporâneo; ela trata com seriedade e não apenas na base da condenação inapelável as mudanças culturais trazidas pela modernidade; e não se aferra a moralismos estreitos que andam de mãos dadas com posturas políticas elitistas. Assim, se a queixa de muitos “desigrejados” tem a ver com discursos que julgam totalmente ultrapassados, com vigilância moral que ameaça sua liberdade de escolha e com a conivência das igrejas na manutenção do status quo, não poderíamos pensar que as coisas seriam diferentes se essas mesmas igrejas estivessem na vanguarda da sociedade e não sendo a âncora que impede tantas mudanças necessárias nela?

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Algumas poucas palavras sobre o Gondim
                                                                              Leandro Thomaz de Almeida


Como é sabido, Ricardo Gondim tem levado pancada de todo lado. De todo lado no meio evangélico, melhor dizendo. Os conservadores das igrejas tradicionais o chamam de herege, os pentecostais não admitem sua irreverência, o outrora astro Caio Fábio o chamou de “bundão” (e foi mais um nome colocado em sua lista de “bundões”...). Pessoalmente, não tenho nada contra o Gondim, pelo contrário: é mais que comum de minha parte concordar com os textos que publica em seu site (e também com seus “tweets”, embora o microblog forçosamente condense ideias que valeriam a pena ser desenvolvidas, o que é uma pena), razão pela qual escrevo este texto.
Acredito que os críticos do Gondim não se dão conta de uma série de coisas. Talvez uma das mais importantes é perceber que ele não está propondo uma nova “dogmática” em lugar da atual, uma nova “confissão de fé” a ser adotada pelas igrejas evangélicas, um novo corpo de doutrinas que ocupe o lugar do já existente. Em outras palavras, Gondim não me parece nem um pouco disposto a ser visto como fundador de qualquer movimento doutrinário na igreja, muito menos do chamado “teísmo aberto”, como alguns, aliás, sugeriram. Longe de ser mera reação, as intervenções gondinianas podem ser tomadas como uma voz de protesto contra a letargia do pensamento no mundo evangélico, contra o senso comum travestido de palavra de Deus que grassa entre as igrejas, contra uma recusa do raciocínio por atitudes de fé que não são outra coisa senão uma desonra à capacidade intelectual de que fomos dotados pelo Criador. Não me parece que o Gondim queira rasgar a dogmática do Louis Berkhoff para escrever a sua dogmática (se bem que...). Seus críticos, portanto, poderiam bem recebê-lo de forma menos defensiva e agressiva, atitudes típicas de quem quer guardar posição, de quem se acha no dever de defender sua propriedade, seu quinhão. A maturidade dos evangélicos se percebe em sua absoluta incapacidade para o diálogo e para a polêmica (por que não pensar que a polêmica pode ser uma excelente pedagogia?).
As palavras do Gondim revelam, ainda, uma disparidade: a existente entre a profunda empatia com os seres humanos (sejam eles brasileiros, japoneses ou indonésios...) e a abissal indiferença e mesmo crueldade do discurso teológico tradicional. Escondido sob a rubrica de “Palavra de Deus” esse discurso, no fundo, não lamenta profundamente o sofrimento e o mal, simplesmente porque estes (manifestados em acidentes, catástrofes, ditaduras, doenças) são uma comprovação de que sua teologia é verdadeira: um mundo decaído e um homem totalmente depravado devem ser evidenciados pelas várias facetas do mal no mundo, razão pela qual podemos até lamentá-lo, mas contra o qual não devemos ficar profundamente indignados. Ao fim e ao cabo, ele é confirmação da maldição divina pelo pecado original (a pedra de toque da antropologia mais hostil ao ser humano já produzida até hoje). Percebo no Ricardo Gondim um coração transbordante de compaixão, uma alma que quase arrebenta o peito diante da dor alheia e, nessas condições, toda teologia quadradinha tem mesmo que ir pro espaço, virar fumaça, ser moída no cadinho da vida vivida, da experiência concreta. O que o Gondim tem feito é uma teologia de protesto contra a desumanização da teologia.
Nesse sentido, é inevitável que conceitos caros aos guardiões da “sã doutrina” sejam abalados. Um deles é o que lhes confere mais segurança: a (maltratada) doutrina da Soberania de Deus. Soberania que implique em fatalismo não combina absolutamente com compaixão. Excessiva compaixão, aliás, pode sugerir, sub-repticiamente, um protesto contra os decretos divinos. Não espanta que os conservadores sejam tão contidos diante dos males que assolam a sociedade brasileira, por exemplo. Nesse ponto, acho que o Gondim concordaria plenamente com o que Jacques Ellul escreveu em um livro soberbo, La subversion du christianisme. Ao mostrar o quanto a ênfase no pecado conduziu o homem ao niilismo, e ao desdobrar sua argumentação no sentido de considerar as implicações da criação como um ato divino, Ellul escreve: “A história é habitada, ao mesmo tempo em que se faz, por uma relação que se desenvolve em um certo sentido, positivo mas não descritível, uma relação onde o criador assegura que o fim não é o caos ou o Nada, nem a repetição pura e simples do melhor dos mundos. Se o fim positivo nos é assegurado, o caminho atual que é deixado a nossa iniciativa é indefinido e aleatório. A obra final depende das realizações sucessivas da humanidade que Deus acolhe, salva e retoma, assumindo-as” (p.173). Como levar mais a sério a ideia de que somos cooperadores de Deus? Gondim nos faz pensar de forma mais séria em nossa responsabilidade, tantas vezes jogada nas costas de um Deus imutável e impassível.
Diria que ele tem feito, portanto, uma "teologia de migalhas, ou seja: sem construir um sistema teológico, tem dado contribuições preciosas, pequenas pepitas, que nos permitem repensar a presença de Deus na vida, o seguimento de Jesus Cristo, a habitação pelo Espírito Santo. Não é pouca coisa. E no meio de tanto tiroteio, essa é minha expressão de solidariedade e profunda empatia.

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DEUS NOS LIVRE DE UM BRASIL EVANGÉLICO
                                                                                            Ricardo Gondim

Começo este texto com uns 15 anos de atraso. Eu explico. Nos tempos em que outdoors eram permitidos em São Paulo, alguém pagou uma fortuna para espalhar vários deles, em avenidas, com a mensagem: “São Paulo é do Senhor Jesus. Povo de Deus, declare isso”.
Rumino o recado desde então. Represei qualquer reação, mas hoje, por algum motivo, abriu-se uma fresta em uma comporta de minha alma. Preciso escrever sobre o meu pavor de ver o Brasil tornar-se evangélico. A mensagem subliminar da grande placa, para quem conhece a cultura do movimento, era de que os evangélicos sonham com o dia quando a cidade, o estado, o país se converterem em massa e a terra dos tupiniquins virar num país legitimamente evangélico.
Quando afirmo que o sonho é que impere o movimento evangélico, não me refiro ao cristianismo, mas a esse subgrupo do cristianismo e do protestantismo conhecido como Movimento Evangélico. E a esse movimento não interessa que haja um veloz crescimento entre católicos ou que ortodoxos se alastrem. Para “ser do Senhor Jesus”, o Brasil tem que virar "crente", com a cara dos evangélicos. (acabo de bater três vezes na madeira).
Avanços numéricos de evangélicos em algumas áreas já dão uma boa ideia de como seria desastroso se acontecesse essa tal levedação radical do Brasil.
Imagino uma Genebra brasileira e tremo. Sei de grupos que anseiam por um puritanismo moreno. Mas, como os novos puritanos tratariam Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Maria Gadu? Não gosto de pensar no destino de poesias sensuais como “Carinhoso” do Pixinguinha ou “Tatuagem” do Chico. Será que prevaleceriam as paupérrimas poesias do cancioneiro gospel? As rádios tocariam sem parar “Vou buscar o que é meu”, “Rompendo em Fé”?
Uma história minimamente parecida com a dos puritanos provocaria, estou certo, um cerco aos boêmios. Novos Torquemadas seriam implacáveis e perderíamos todo o acervo do Vinicius de Moraes. Quem, entre puritanos, carimbaria a poesia de um ateu como Carlos Drummond de Andrade?
Como ficaria a Universidade em um Brasil dominado por evangélicos? Os chanceleres denominacionais cresceriam, como verdadeiros fiscais, para que se desqualificasse o alucinado Charles Darwin. Facilmente se restabeleceria o criacionismo como disciplina obrigatória em faculdades de medicina, biologia, veterinária. Nietzsche jazeria na categoria dos hereges loucos e Derridá nunca teria uma tradução para o português.
Mozart, Gauguin, Michelangelo, Picasso? No máximo, pesquisados como desajustados para ganharem o rótulo de loucos, pederastas, hereges.
Um Brasil evangélico não teria folclore. Acabaria o Bumba-meu-boi, o Frevo, o Vatapá. As churrascarias não seriam barulhentas. O futebol morreria. Todos seriam proibidos de ir ao estádio ou de ligar a televisão no domingo. E o racha, a famosa pelada, de várzea aconteceria quando?
Um Brasil evangélico significaria que o fisiologismo político prevaleceu; basta uma espiada no histórico de Suas Excelências nas Câmaras, Assembleias e Gabinetes para saber que isso aconteceria.
Um Brasil evangélico significaria o triunfo do “american way of life”, já que muito do que se entende por espiritualidade e moralidade não passa de cópia malfeita da cultura do Norte. Um Brasil evangélico acirraria o preconceito contra a Igreja Católica e viria a criar uma elite religiosa, os ungidos, mais perversa que a dos aiatolás iranianos.
Cada vez que um evangélico critica a Rede Globo eu me flagro a perguntar: Como seria uma emissora liderada por eles? Adianto a resposta: insípida, brega, chata, horrorosa, irritante.
Prefiro, sem pestanejar, textos do Gabriel Garcia Márquez, do Mia Couto, do Victor Hugo, do Fernando Moraes, do João Ubaldo Ribeiro, do Jorge Amado a qualquer livro da série “Deixados para Trás” ou do Max Lucado.
Toda a teocracia se tornará totalitária, toda a tentativa de homogeneizar a cultura, obscurantista e todo o esforço de higienizar os costumes, moralista.
O projeto cristão visa preparar para a vida. Cristo não pretendeu anular os costumes dos povos não-judeus. Daí ele dizer que a fé de um centurião adorador de ídolos era singular; e entre seus criteriosos pares ninguém tinha uma espiritualidade digna de elogio como aquele soldado que cuidou do escravo.
Levar a boa notícia não significa exportar uma cultura, criar um dialeto, forçar uma ética. Evangelizar é anunciar que todos podem continuar a costurar, compor, escrever, brincar, encenar, praticar a justiça e criar meios de solidariedade; Deus não é rival da liberdade humana, mas seu maior incentivador.
Portanto, Deus nos livre de um Brasil evangélico.