quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Dez anos depois...

Depois de um olhar honesto para os últimos dez anos da minha vida notei algumas mudanças em minha maneira de viver e pensar a fé cristã. Percebi que nessa última década, em algum momento saí da trilha e passei a abrir picada, que poucos dos meus companheiros se aventuraram comigo – a maioria preferiu a segurança e o conforto que desfrutam aqueles que optam pelos caminhos já trilhados às crises e perigos a que estão sujeitos os desbravadores. Não sou capaz de apontar o momento exato em que se deu essa mudança, mas posso dizer que percebo no hoje uma descontinuidade com o ontem e que de repente, “não mais que de repente”, me dei conta de que em mim há um outro movimento e uma outra lógica que de alguma maneira transgride aquilo que foi...

Hoje, já não me encanto mais com a pretensão daqueles que procuram perscrutar Deus tentando adentrar à sua essência e compreender o seu ser, não me sinto mais atraído pelos compêndios de teologia que reduzem Deus a atributos comunicáveis e incomunicáveis e, não tenho mais a pretensão de ter a última palavra nas conversas sobre teologia. Percebo que o conhecimento outrora enrijecido, deu lugar à compreensão flexível e aberta, de quem se deu conta de que não é possível exaurir o mistério divino, e por isso se abre para uma descoberta diária através do diálogo, do auto-desarmamento e da consciência de não ser dono da verdade.

Hoje não faço mais da defesa da fé (se é que a fé precise de defesa) uma questão de honra pessoal. Não quero construir trincheiras para declarar guerra contra aqueles que pensam diferente, nem me esconder por detrás das muralhas da única verdade. Há algum tempo conversei com um estudante de teologia que me confidenciou seu prazer em debater com pessoas de outras religiões e levá-las a nocaute com textos bíblicos decorados; pensei comigo: “que despropósito!” Eu também fui assim, mas hoje entendo que a melhor defesa da fé é a fé encarnada, é a vida que tem Deus como preocupação última, e que aqueles que assumem uma postura inquisitorial contra “ímpios, pagãos e hereges”, na verdade não entenderam a proposta do Evangelho de Jesus Cristo.

Hoje posso dizer que amo mais a vida e confesso que às vezes me sinto triste só de imaginar que um dia ela chegará ao fim. Sinto-me à vontade para dizer que amo esse mundo, pois me desembaracei daquela teologia tacanha e da interpretação bíblica simplista que no passado me ensinou que o compromisso com Cristo implicava em um descompromisso e até menosprezo para com o mundo e por essa vida. Tenho sede de viver e quero sorver cada dia como uma dádiva de Deus.

É verdade que na medida em que os anos passam algumas pessoas tendem a se tornarem rígidas e intransigentes em sua forma de viver e pensar a fé, contudo, o enrijecimento e a intransigência tem a ver com a atitude defensiva de quem não consegue lidar com a espontaneidade que é característica da vida cristã. De minha parte, depois de dez anos descobri que não faço parte do grupo daqueles que vêem a fé cristã como correntes que aprisionam, mas compartilho como com todos aqueles que descobriram nela uma proposta que liberta para vida, “que é bonita, é bonita e é bonita”.

Luciano L. Borges

Poema


Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

Fernando Pessoa
O guardador de rebanhos

Inquisição ontem e hoje

“O fato histórico, entretanto, é que as práticas inquisitoriais continuaram em operação no Protestantismo. Práticas inquisitoriais são o conjunto de procedimentos institucionais cuja função é identificar e eliminar o pensamento divergente. Quanto a Lutero, é sabida a sua atitude para com os movimentos anabatistas, e o seu conselho que deveriam ser mortos com o mesmo espírito com que se mata um cão raivoso. E quanto a Calvino, as fogueiras continuaram a ser acesas em Genebra, não apenas para queima de Miguel Serveto, como também para queima de dezenas de bruxas. Podemos nos desfazer desta evidência histórica perturbadora, explicando o comportamento dos reformadores como decorrência da atmosfera católico-medieval que ainda respiravam. Assim fazendo, conseguimos salvar a ideologia protestante da liberdade e do livre exame, atribuindo as origens da inquisição protestante a um resíduo de espírito católico. Mas neste caso seria necessário demonstrar que o espírito e as práticas inquisitoriais desapareceram gradualmente do Protestantismo. E parece que isso não é possível. O que se observa é o seu reaparecimento no seio do Protestantismo sempre que o pensamento divergente ameaça a sua unidade política e ideológica. Na verdade, seria possível interpretar a tendência protestante para as divisões denominacionais e sectárias como uma expressão de práticas inquisitoriais. É evidente que fogueiras não podem mais ser acesas. Entretanto, o fato de os grupos com pensamento divergente serem forçados a deixar uma certa igreja é uma evidência da presença de mecanismos de controle de pensamento extremamente eficazes na igreja de que foram forçados a sair.”

Rubem Alves
Livro: Dogmatismo e tolerância